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Olga, o nome que significa força

Por: Maria Júlia Araújo

Revivendo memórias. Foto: Maria Júlia Araújo

Acordo ouvindo passos, que vão e vêm. Meio sonolenta, demoro um pouco para entender a origem do som. Me dou conta que é minha avó fazendo a sua “caminhada” no corredor da casa.

Já fazia uns dias que ela reclamava de dor nas pernas e inchaço nos pés. E ela não é de reclamar. A levamos ao angiologista e ele nos contou que ela estava acumulando líquido, devido a falta de atividade física.

Com 82 anos de idade e a força que carrega no nome, Olga da Silva Campos, minha avó sempre foi extremamente ativa e independente, duas características que foram limitadas pela pandemia do novo coronavírus, que assolou o mundo em 2020. Desde o início da crise, em março deste ano, toda a minha família adotou as medidas de isolamento e prevenção recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E minha avó, que mora em um bairro próximo ao meu, passou alguns meses sozinha.

Íamos a casa dela, somente, para entregar compras ou atender alguma demanda que ela solicitasse. A esperança era de que a pandemia terminasse logo. Mas ela não terminou. Ao contrário, junto a ela, vieram novos efeitos colaterais.

O primeiro aconteceu logo em maio, apenas dois meses após o início do isolamento, quando a pressão da minha avó começou a bater a marca dos 18/9. Demorei um pouco para saber o que estava acontecendo, porque minha mãe evita me contar essas coisas, diz ela, que eu sempre fico desesperada demais – talvez fique mesmo.

Mas em uma conversa por telefone, acabei descobrindo. Eram 20h35 do dia 24/05/2020 quando liguei para o Dr. Herculano, o cardiologista da família. Ele, muito solícito, fez um encaixe nas consultas do dia seguinte e me tranquilizou, “o que preocupa a ponto de precisar levar no hospital, não é a pressão alta, mas sim possíveis lesões no órgão, que causam dor torácica e celaféia”. Ele nos orientou a aumentar a dose do remédio da pressão e monitorar os dias seguintes. Assim fizemos e enviamos a ele todos os dias, neste esquema a seguir:

26/05/2020

7h40 》E 15/8 ♡74 ▪︎D 14/9 ♡76

10h 》E 15/7 ♡88▪︎D 15/9 ♡81

12h 》E 14/8 ♡77 ▪︎D 14/9 ♡75

15h 》E 12/9 ♡83▪︎D 11/9 ♡83

18h 》E 14/8 ♡67 ▪︎D 14/9 ♡69

22h40 》E 17/8 ♡67▪︎D 16/8 ♡67*

*Esqueceu de tomar o remédio às 20h, tomou por volta das 22h30

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E - Braço esquerdo

D - Braço direito

♡ - Batimento cardíaco

Apesar das oscilações, após alguns exames, o Dr. Herculano constatou que não havia nenhuma alteração física e isso, provavelmente, era a ansiedade gritando. Conversando com os meus amigos, descobri que a minha avó não era a única e esse caso, era mais comum do que eu imaginava.

Um relatório publicado pelas Nações Unidas, em maio de 2020, denominado “Policy Brief: The Impact of Covid-19 on older persons” – no português, “Relatório: impactos do Covid-19 nos idosos” –, descreveu cinco tipos de impactos evidenciados pela pandemia: bem-estar econômico, saúde mental, trabalho, mortes, vulnerabilidade e abusos. Sintomas como ansiedade, depressão e hipertensão em idosos, aumentaram durante este período.

Minha avó está nessas estatísticas. A saída que encontramos foi tentar nos adaptar e buscar soluções para mantê-la segura, mas ao mesmo tempo, evitar esses novos efeitos colaterais. Foi quando passamos a criar medidas que tornassem possível que um de nós passasse uns dias na casa dela, ou ela na nossa.

E foi assim, que eu acordei em uma das manhãs com os passos dela “caminhando” no corredor. No dia anterior, ela havia ido ao angiologista para investigar o inchaço nas pernas e pés e, também, as dores que estava sentindo. A recomendação foi que ela caminhasse, ao menos 15 minutos, todos os dias. Fizesse fisioterapia duas vezes na semana e andasse em uma piscina de vez em quando. Logo após acordar com os passos, levantei e entrei em contato com a fisioterapeuta.

“Ela deve estar com dor, né? Ela é muito tranquila, quando ela fala que está com dor né meu bem, é porque está com muita”, me respondeu a fisioterapeuta, em áudio via Whatsapp. Minha avó é assim, forte até demais. Quando eu fico doente ela sempre fala: “não se entrega filhinha, a gente tem que lutar contra a dor”. Mas algo deu errado na genética e eu, com apenas 21 anos, sou a mais molenga da família.

Após a caminhada no corredor da casa, sentei com ela na mesa da cozinha para tomarmos o café da manhã, que ela chama de “lanchinho”. Conversando, perguntei se os remédios já estavam fazendo efeito e o inchaço estava diminuindo. Felizmente estavam.

A conversa foi se desdobrando e falamos sobre as diferenças na vida dela no período anterior à pandemia. Três vezes por semana ela ia na hidroginástica e, também, na igreja, duas vezes por semana fazia drenagem nas pernas e uma vez por semana ia no Arte Luz – um grupo de artesanato. Isso sem contar as inúmeras vezes que transitava pela cidade para visitar filhos, irmãos, amigos e netos.

Minha avó sabe se deslocar para qualquer lugar de ônibus – foi com ela que aprendi a andar –, quando ainda era novinha e a acompanhava em consultas e visitas. Ela também sempre foi de viajar, ia visitar a filha Elza, que mora em Cuiabá, e o filho mais velho, que mora em São Paulo. Além dos irmãos, espalhados no interior de Minas Gerais e do Mato Grosso.

Agora, devido às limitações impostas pela pandemia, foi preciso se adaptar. Nós, principalmente, eu, minha mãe e minha irmã, costumávamos passar dias na casa dela e dificilmente ela ficava sozinha. Todos nós sentimos as mudanças.

A igreja sempre foi algo que minha avó valorizou muito, nunca faltava um dia. Antes de se reunir com a família, ela sempre estava presente na confraternização de Natal com os “irmãos” e , neste final de ano, é a época que essa saudade está batendo mais forte.

“É tão lindo o Natal lá minha filha, ficamos o mês inteiro cantando hinos temáticos” – ela me conta com o olhar pesaroso. Minha mãe seguiu outro caminho, se tornou espírita e, por isso, nunca tive muito contato com a igreja. Mas mesmo assim, sei de cor até hoje, um hino que minha avó cantava para embalar eu e meus primos no sono quando éramos pequenos.

A ideia dessa relação próxima com a igreja, pode gerar um estereótipo. Mas posso garantir que a minha avó é uma das pessoas mais tolerantes que conheço. Ela tem muita fé e acredita nos valores que aprendeu, mas nunca os impôs a nós.

Me lembro do carnaval no ano passado, quando eu queria fazer um top para usar na minha fantasia. Minha avó não é a maior fã desse tipo de blusa, ela acha “pelada demais”. Mesmo assim, passou horas comigo desenhando e costurando o top. No fim, disse para a minha mãe “não é que ficou lindinho nela?”.

Inclusive, estava conversando com a minha mãe uns dias atrás e disse “acho que minha avó nem sabe, mas ela é uma das mulheres mais feministas que eu conheço”. E ela me respondeu: “ela é mesmo”.

Ela sempre faz questão de me falar “foca nos seus estudos, no seu trabalho. Relacionamento, só se for para acrescentar, não deixa homem nenhum atrapalhar o seu caminho”. Frases de quem aprendeu muito com a vida.

Hoje, ela mantém o contato com a igreja, apenas via internet, assistindo as assembleias ao vivo, mas ainda com muita saudade das relações sociais que cultivou lá. Foram mais de 30 anos caminhando 950 metros da casa dela, até a igreja. Toda semana.

Sentada do outro lado da mesa, com o cabelo preso e as pernas estendidas em uma outra cadeira – para evitar o inchaço –, ela desabafa: "ah minha filha, sinto muita falta de ir na casa da minha família, de ir na igreja, de abraçar vocês. Gosto nem de lembrar, a gente sente falta de tudo”.

Nessa hora vem a angústia, queria poder abraçá-la, mas não posso. É difícil. Agora, nos resta acreditar que estamos fazendo o certo e o que está ao nosso alcance, acreditando que dias melhores virão e os abraços farão parte, novamente, da nossa vida.

“Quando acabar isso eu quero ir pro Mato Grosso ver a minha família” – diz minha avó com um olhar saudoso. Durante a nossa conversa, o telefone apita várias vezes. São mensagens de filhos, netos e irmãos. Ela é muito envolvida com a família e, também, muito querida por todos.

Com ela não tem essa de “não conhecer o vizinho”. Sempre que eu costumava sair com ela para caminhar, ela dava bom dia para cada pessoa que via na rua. Por mais que, às vezes, nunca as tivessem visto.

Quando falei com a fisioterapeuta dela, ela fez questão de falar “manda um abraço para a sua avó, estou com saudade”, um reflexo de como ela conquista todos. Provavelmente, é por isso que tudo isso a afeta tanto. Minha avó sempre foi uma pessoa rodeada de afeto, ficar longe de tudo e todos, não é fácil. Como ela diz “essa situação é para proteger a gente, mas ao mesmo tempo, causa mais coisas, né?”.

Terminamos o café e eu vou para a copa, onde tem um armário grande que ocupa toda a parede, ele é marrom e antigo. Pego uma chave e abro a última porta de baixo. Lá é onde minha avó guarda uma caixa cheia de fotos que, vez ou outra, eu adoro olhar. Gosto de imaginar como era a vida dela antes de mim e tentar entender um pouco mais sobre quem é ela e de onde vem toda a força que conheço hoje.

Passamos quatro horas olhando as fotos antigas, na caixa tem aqueles mini-binóculos de ver negativos, que eu amo. Enquanto ela borda, vou perguntando quem é cada uma das pessoas nas fotos. Ela já me falou várias vezes, mas eu sempre esqueço. Acho impressionante como ao ver as fotos, ela lembra detalhadamente das datas e me conta histórias muito além do que as imagens mostram.

Um tempo depois, minha mãe chega para me buscar. Junto as minhas coisas, depois de passar três dias com a minha avó e me despeço dela. De longe, mando um beijo e sinalizo um abraço, ela devolve o gesto. Nossa nova forma de estar perto em tempos de isolamento. Mesmo assim, saio de lá mais leve e sinto que ela também. Agora, resta esperar a próxima visita.

Pesquisei o significado do nome dela na internet, encontrei a definição “santa, abençoada”. Sinto que abençoada sou eu, por ter tido a honra de dividir a vida e aprender com ela. Para mim, o nome “Olga” remete à força, à uma pessoa de garra. Assim como é minha avó.